O Papalagui

14.12.09


As muitas coisas tornam o Papalagui mais pobre

Podereis reconhecer também o Papalagui pelo seu desejo de nos fazer crer que somos pobres e miseráveis e que necessitamos de muita ajuda e piedade, em virtude de não possuirmos «coisas».

Queridos irmãos destas muitas ilhas: permiti que vos diga o que é uma «coisa». A noz de coco é uma coisa, o enxota-moscas, o pano, a concha, o anel, o prato da comida, o adorno da cabeça são outras tantas coisas. Mas há duas espécies de coisas. Há coisas que o Grande Espírito cria sem nós vermos e que nos não exigem, a nós, humanos, qualquer esforço ou trabalho, coisas tais como a noz de coco, a concha e a cabana, e há coisas que os homens criam, que exigem muito esforço e trabalho, tais como o anel, o prato ou o enxota-moscas. Pretende então o alii que são estas coisas criadas pelas suas próprias mãos, as coisas humanas, que nos fazem falta; pois não é possível que se esteja a referir às coisas criadas pelo Grande Espírito. Quem, realmente, será mais rico e possuirá mais coisas do Grande Espírito do que nós? Passeai os olhos à vossa volta, até ao longínquo horizonte, onde a grande abóbada azul se apoia na borda da terra: está tudo cheio de grandes coisas — a floresta virgem com os seus pombos selvagens, os seus colibris e piriquitos, a lagoa com os seus pepinos do mar, as suas conchas, as suas lagostas e outros animais aquáticos, a praia com o seu rosto claro, a pele macia da areia, o grande mar capaz de imitar o guerreiro furioso, capaz também de sorrir como uma taopoú, a grande abóbada azul diferente de hora para hora, semeada de grandes flores que nos dão uma luz ora doirada ora argêntea. Para quê ser parvo, para quê criar ainda mais coisas para além das coisas sublimes que o Grande Espírito nos dá?

O Papalagui julga-se na verdade capaz de obrar tais coisas, julga-se tão forte como o Grande Espírito. Eis porque, do nascer ao pôr-do-sol, milhares e milhares de mãos mais não fazem do que fabricar coisas, coisas humanas cujo sentido ignoramos e cuja beleza desconhecemos. O Papalagui procura inventar sempre novas coisas. As suas mãos tornam-se febris, o seu rosto, cor-de-cinza, e curvadas as suas costas; mas os olhos brilham-lhe de felicidade sempre que consegue uma nova coisa. Logo todos a querem ter, todos a adoram e a celebram com cantos na sua língua.

Oxalá, irmãos meus, me acrediteis quando vos digo: eu descobri o que se oculta por detrás dos pensamentos do Papalagui, eu vi o que ele pretende, tão claramente como ao sol do meio-dia. Destruindo, por onde quer que passe, as coisas do Grande Espírito, pretende ele, pelas suas próprias forças, fazer reviver o que mata e persuadir-se a si mesmo que é o Grande Espírito criador das várias coisas.

Pois precisamente onde se erguem as inúmeras cabanas dos Papalaguis — esses sítios a que eles chamam «cidades» — o solo está tão árido como a palma da mão! É por isso que o Papalagui perdeu o trambelho e brinca ao Grande Espírito para esquecer o que não tem. Como é assim pobre, e a sua terra triste, apodera-se das coisas, colecciona-as como um louco que apanhasse folhas murchas e com elas enchesse a casa. Mas é também por isso que ele nos inveja e deseja que nos tornemos pobres à semelhança dele.

É sinal de pobreza o homem precisar de tanta coisa; mostra, com isso, que é pobre em coisas do Grande Espírito. O Papalagui é pobre porque está obcecado pelas coisas. Já não pode passar sem elas. Numa cabana europeia há sempre tantas coisas que, mesmo que todos os homens de uma aldeia de Samoa carregassem mãos e braços com elas, nem assim conseguiriam levar tudo.

Quem tem poucas coisas considera-se pobre e isso fá-lo sentir-se triste. Não há Papalagui algum que seja capaz de cantar e mostrar um olhar feliz se apenas possuir, como nós, uma esteira para dormir e uma tanoa para comer. Muito se lamentariam os homens e as mulheres do mundo branco se vivessem nas nossas cabanas! Tratavam logo de ir buscar madeira à floresta; traziam depois carapaças de tartaruga, e vidro, e arame, e pedras de todas as cores, bem como outras coisas mais; as suas mãos não paravam, de manhã à noite, até a cabana de Samoa ficar repleta de pequenas e grandes coisas, coisas que se decompõem, todas elas, rapidamente, que um fogo ou uma chuvada tropical bastam para destruir, de modo que é sempre preciso tornar a fazer outras.

Quanto mais realmente europeu for um homem, mais necessidade terá de coisas. Eis a razão por que as mãos do Papalagui nunca param de fazer coisas. A razão por que o rosto dos Brancos se apresenta geralmente cansado e triste, por que só muito poucos gastam tempo com as coisas do Grande Espírito, e a jogar no largo da aldeia, e a compor e cantar canções joviais, ou a dançar ao domingo, em plena luz do dia, ou a fruir dos seus membros de todas as formas possíveis, como a nós nos é dado fazer, é que eles têm sempre coisas a fazer. E coisas a guardar. Coisas que se fincam, que se agarram a eles como as formiguinhas das praias. Para se apropriarem das coisas, cometem toda a espécie de crimes, sem que isso lhes afecte o ânimo. Guerreiam-se, não porque a sua honra esteja em jogo, ou para medir forças, mas apenas por cobiça das coisas de outrem.

E eis que, hoje, os homens brancos querem trazer-nos os seus tesouros, as suas coisas, para também nós nos tornarmos ricos! Contudo essas coisas não passam de setas que envenenam mortalmente o peito daquele que é atingido. Ouvi um Branco que conhece bem a nossa terra dizer: «Temos que levá-los a ter necessidades!» Necessidades, quer dizer coisas! E acrescentou depois esse homem inteligente: «Só então é que eles ganharão de facto gosto pelo trabalho!» E propôs-nos que empregássemos também a força das nossas mãos a fazer coisas, coisas para nós, é claro, mas, acima de tudo, coisas para ele, Papalagui! Como se também nós devêssemos ficar derreados, envelhecidos e curvados!

Irmãos destas muitas ilhas: temos que tomar cuidado e permanecer vigilantes, pois as palavras do Papalagui parecem bananas doces, mas estão cheias de dardos ocultos, feitos para matar toda a luz e a alegria que há em nós. Não esqueçamos nunca que, à parte as coisas do Grande Espírito, de poucas coisas mais necessitamos.Ele deu-nos olhos para ver as suas coisas. Ora é necessário mais do que uma vida para um homem as ver todas. Por mais numerosas, por mais refulgentes, brilhantes, sedutoras e aliciantes que sejam, nunca as coisas do Papalagui tornaram mais belo o seu corpo, mais brilhantes os seus olhos, mais apurados os seus sentidos. As coisas dele não servem, pois, para nada.

Tuiavii de Tiávea, O Papalagui
trad. Luiza Neto Jorge, Antígona, 1982


1 comentários em "O Papalagui"

Anónimo disse...

O homem branco tem "assassinado" muitos Papalaguis... Tão ignorante que não percebe que o Grande Espírito é que o mantem vivo.